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Desafios da inclusão laboral da pessoa com deficiência

Por Silvana Abramo Margherito Ariano, 9/12/2020


I – Introdução:


Ao ensejo da comemoração do dia 3 de dezembro, Dia Internacional da Pessoa com Deficiência, instituído pela Organização das Nações Unidas – ONU, em 1992, importa refletir e avaliar alguns desafios que se apresentam para a inclusão das pessoas com deficiência no mundo do trabalho.


A crise mundial, econômica, social, ambiental e sanitária torna cada vez mais urgente a necessidade do reconhecimento da centralidade, e da busca pela efetivação dos Direitos Humanos e da garantia da dignidade da pessoa humana, e em especial no Brasil, em que a profunda desigualdade, em todas as suas dimensões é o desafio maior para esta e para as próximas gerações.


No presente artigo, o tema da efetivação dos direitos da pessoa com deficiência no trabalho formalizado, a partir dessa perspectiva, é examinado e tem a interpretação da lei ordinária orientada, entre outras, pelos Pactos Internacionais sobre os Direitos Civis e os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966; a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU, de 2007; a Convenção 159 da OIT sobre a Reabilitação Profissional e Emprego; a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável da ONU, a Constituição da República Federativa do Brasil e a Lei Brasileira de Inclusão.


Estes parâmetros normativos, todos em plena vigência, não são aqui entendidos como normas programáticas, ideais que devem restar relegados ao campo das intenções, a um patamar inatingível no momento, mas ao contrário, em normas cogentes que obrigam Estado, sociedade e indivíduo, e que lançam o imperativo ético-existencial de construir, aqui e agora, um mundo que acolha e valorize todas as diferenças, que respeite o meio ambiente e no qual todos os seres humanos possam viver em liberdade e dignidade.


Este desafio se coloca especialmente ao Poder Judiciário Trabalhista, convocado a resolver os conflitos relativos aos direitos humanos e fundamentais no mundo do trabalho, tanto no âmbito das ações coletivas quanto nas individuais. Para abordá-lo se utilizará do recurso de análise seguindo os tempos do desenvolvimento de uma relação de emprego: a admissão – a manutenção e a rescisão do contrato – destacando os principais problemas que se apresentam ao judiciário trabalhista.


Ressalva-se que não se olvida a situação das pessoas portadoras de deficiência que trabalham na informalidade, como autônomos ou empreendedores individuais, para os quais as normas internacionais e constitucionais igualmente se aplicam, guardadas as suas especificidades laborais, com demandas igualmente fundamentais, mas que extrapola os limites do presente artigo. Dirigem-se, portanto, as reflexões abaixo aos contratos formais de trabalho em razão da experiência de atuação da Justiça do Trabalho da Segunda Região

1. DIFICULDADES NA ADMISSÃO – CUMPRIMENTO DAS COTAS


Quando o tema dos processos ajuizados é a admissão de trabalhadores com deficiência, a questão principal com que o judiciário trabalhista se depara é cumprimento da reserva de vagas, as chamadas cotas, estabelecidas no artigo 93 da Lei 8.213/91. Trata-se de ações civis públicas, ajuizadas pelo Ministério Público do Trabalho, observando-se que apesar existir legitimação na Lei 7.347/1985, art. 5, V, para organizações sociais, esta não é a regra. O tema também é discutido em ações anulatórias de autuações do Ministério da Economia, ajuizadas por empresas autuadas.

Tanto em umas como nas outras, quanto os processos chegam à apreciação da Justiça do Trabalho já se percorreu longo caminho na tentativa de cumprimento da legislação. No caso das ações civis, a partir de autuação da empresa pela fiscalização - cujas necessidades e fragilidades mereceriam um outro estudo, ou de denuncias, o Ministério Público do Trabalho, no âmbito de seu poder de ajustar condutas e de proceder a inquérito civil público, busca sempre encontrar os meios e as formas de cumprimento da lei. No caso das autuações haverá sempre a etapa administrativa e o pleno direito ao contraditório às empresas.


No âmbito dos processos judiciais, em grande parte das defesas no caso das ações civis públicas e das petições iniciais no caso das ações anulatórias, se verificam duas ordens de argumentos: os jurídicos, dentre os quais se destacam as alegações de que o artigo 93 da Lei 8.213/91 foi derrogado pela Lei Brasileira de Inclusão e que do número de empregados que compõem o universo sobre o qual deve ser calculada a cota devem ser excluídas funções e atividades cuja execução seria impossível a pessoas com deficiência. A segunda ordem de argumentos se dá em matéria fática, sendo o mais comum a alegação de dificuldade, frustração ou impossibilidade em se encontrar pessoas com deficiência interessadas em ser contratadas em número suficiente para o preenchimento da reserva legal.


Quanto à vigência do artigo 93 da Lei 8.213/91, que, diga-se de passagem, é denominada impropriamente de Lei de Cotas, vez que na verdade, juntamente com a Lei 8.212/91 estabelece o arcabouço jurídico da Previdência Social no Brasil, se pode dizer que há consenso na jurisprudência no sentido de que não houve sua derrogação pela Lei Brasileira de Inclusão. No aspecto teleológico verifica-se sua completa coerência e afinidade com o sistema internacional de normas sobre a pessoa com deficiência e a Constituição da República. Mas, para, além disso, a interpretação literal da lei induz à mesma conclusão.


É que o Projeto da Lei Brasileira de Inclusão – Lei 13.146/2015, em seu art. 101, previa a alteração do artigo 93, incisos I a V e parágrafo 4º, com a redução do número mínimo de empregados para incidência de cota para deficientes de 100 para 50, sendo este artigo vetado pela então Presidente da República Dilma Rousseff, que, em mensagem ao Congresso Nacional apresentou como razão do veto: “Apesar do mérito da proposta, a medida poderia gerar impacto relevante no setor produtivo, especialmente para as empresas de mão de obra intensiva de pequeno e médio porte, acarretando dificuldades no seu cumprimento e aplicação de multas que podem inviabilizar empreendimentos de ampla relevância social”.[1] Veto este que não foi rejeitado pelo Congresso, o que faz concluir pela plena vigência dos incisos que instituem as cotas, no artigo em comento.


Assim, se encontra em plena vigência, e em perfeita consonância com a Constituição da República este artigo, que estabelece que as empresas com mais de 100 empregados devem admitir e manter de 2% a 5% de pessoas reabilitadas pelo INSS ou com deficiência, sendo que de 101 a 200 empregados – 2%; de 201 a 500, 3%; de 501 a 1.000, 4% e mais de 1.001 – 5%.


A segunda ordem de argumentos postos em juízo, em que há maior controvérsia na jurisprudência é aquela em que as empresas afiram ser necessário que da base de cálculo da cota sejam excluídas as funções que não seriam possíveis ser desempenhadas por pessoas com deficiência.


Do ponto de vista estritamente jurídico a tese não se sustenta, vez que a simples leitura do artigo 93 indica que ali não há nenhuma distinção ou se estabelece a possibilidade de aplicação da cota para cada função ou para cada estabelecimento, filial ou setor da empresa. Ao contrário, se dirige à empresa enquanto pessoa jurídica única e estabelece os percentuais sobre “os empregados”. Além disso, é princípio de interpretação de toda legislação de direitos humanos, que se dê em favor do homem, ou seja, em favor da pessoa que a legislação visa proteger, assim como que a interpretação deve sempre se dirigir para que haja a maior efetividade possível desta proteção. Assim, sob a ótica da jurisprudência majoritária que se verifica empiricamente na Justiça do Trabalho da 2ª. Região que não há possibilidade de exclusão de funções para o cálculo das cotas, ressalvados entendimentos em contrário, respeitada a prova produzida nos autos.


E neste tema cabem também algumas observações que dizem respeito às alterações profundas da forma de organização do trabalho que tem ocorrido desde a década de 70 do século passado e de forma mais intensa nos últimos 10 anos, e que diz respeito especificamente à externalização, formação de cadeias produtivas e terceirizações, que certamente está ligada ao argumento da maior dificuldade de parte das empresas no cumprimento da lei.


É que em uma configuração prevalentemente fordista da empresa, além da realização das atividades finalísticas existem inúmeros postos de trabalho vinculados às atividades meio, administrativas, de manutenção e de suporte que permitem uma melhor acomodação de pessoas com habilidades diversas, sendo, portanto, mais fácil a colocação de pessoas reabilitadas de acidentes ou doenças profissionais ou com deficiência em funções nas quais poderiam exercer suas habilidades.


Com o acirramento da externalização de atividades, com a terceirização e a divisão de etapas de produção entre empresas distintas em uma mesma cadeia produtiva e onde a aplicação de tecnologia substituiu e extinguiu postos de trabalho humano, o rol de funções se reduziu, sempre com vistas à maximização dos lucros e redução de custos. Esse processo não só reduz drasticamente a quantidade de postos de trabalho para todos os trabalhadores como diminui a margem de opções de colocação de trabalhadores vulneráveis e protegidos pelas cotas, entretanto a responsabilidade por essa reorganização produtiva e seus eventuais ônus não pode ser transferida aos trabalhadores e trabalhadoras e deve ser solucionado no âmbito das empresas, implicando na contrapartida social da sua obrigação em criar as condições e postos de trabalho suficientes para o acolhimento e contratação das pessoas com deficiência, em cumprimento à regra constitucional da função social da propriedade.


E cabe também lembrar que as mesmas cotas são exigíveis de empresas prestadoras de serviços e de intermediação de mão de obra terceirizada, e que a lei não distingue entre empresas com fim lucrativo, entes públicos e empresas sem finalidade lucrativa ou de natureza filantrópica.


Também releva destacar que pela classificação do porte empresarial, empresas com 100 ou mais empregados são consideradas de médio porte para o setor industrial e de grande porte para o comércio e serviços, que a lei pressupõe ser as que tem condições econômicas de arcar com os custos decorrentes da admissão e manutenção no emprego de pessoas com deficiência ou reabilitas pelo INSS, isentando as micro e pequenas empresas de tal ônus, como se verifica dos expressos termos do veto presidencial à proposta legislativa de alteração do artigo 93, acima referida.[2]


Outro aspecto importante é a necessidade de sempre haver o questionamento e autoquestionamento relativo a real e verdadeira impossibilidade de atuação de uma pessoa com deficiência em determinada função ou se essa avaliação é determinada por entendimentos generalizantes de um senso comum de cunho discriminatório que perpassa toda a sociedade e que reclama de cada um rigoroso exame crítico. Além disso, não se pode esquecer que o desenvolvimento tecnológico para a inclusão assistiva tem propiciado cada vez mais a oferta de equipamentos que tornam possível o trabalho e a qualificação de trabalhadores e trabalhadoras.


Finalmente, a mais recorrente argumentação de empresas nos tribunais do trabalho é a de que não há apresentação de candidatos em número suficiente para o preenchimento das cotas. Este argumento, aliás, não é exclusivo para as cotas de pessoas reabilitadas e com deficiência, sendo também lançado quando se trata de cumprimento das cotas de aprendizes.

Trata-se de um argumento que por vezes encontra ressonância na jurisprudência, sendo sempre do empregador o ônus de tal prova. Sob a nossa ótica, entretanto, não há possibilidade de acolhimento da tese. Por primeiro porque limitações fáticas não podem se tornar excludentes do cumprimento de lei que, como se viu, não tem caráter programático, sob pena de quebra do Estado Democrático de Direito. Aliás, houvesse plena facilidade na empreitada e fosse ela a regra de contratação – como é a contratação de pessoas do sexo masculino sãos, não haveria a necessidade da proteção legal especial.


Sob o aspecto exclusivamente fático, não basta que a empresa anuncie as vagas e aguarde ser procurada; não basta a consulta a agências de empregos em geral. É necessário trazer das políticas públicas o conceito de busca ativa. Em um universo nacional de mais de 45 milhões de pessoas com deficiência, segundo dados do IBGE/2010[3], não é crível que não haja a possibilidade de serem encontradas pessoas interessadas nestes postos de trabalho. Cabe à empresa procurar efetivamente esta mão de obra. Existem inúmeras organizações da sociedade civil voltadas para o atendimento de pessoas com deficiência e inúmeras iniciativas do poder público para dar visibilidade a trabalhadores e trabalhadoras com deficiência. Igualmente importante que a remuneração oferecida seja igual aos das demais pessoas e não se configure como discriminatória, e que o empregador esteja atento às opções de transporte existentes e ofereça ambiente inclusivo e qualificação para que a pessoa com deficiência possa se sentir segura para enfrentar o desafio de ter um emprego formal.


O essencial é que a pessoa com deficiência não pode ser selecionada para o emprego em razão de sua deficiência. Não é a pessoa que deve se adaptar ao que a empresa oferece, mas ao contrário, a empresa deve fazer a contratação, e após isso proceder à qualificação e ao fornecimento de equipamentos e atitudes asistivos, necessários para que o trabalhador e a trabalhadora possa desenvolver sua atividade em segurança. Esta é a regra legal e se constitui em mudança fundamental na perspectiva das empresas e que por si só tem o poder de ampliar o número de pessoas contratadas para preenchimento das cotas.


2. DIFICULDADES NA MANUTENÇÃO DO TRABALHO


Como acima referido, a qualificação e a adaptação do meio ambiente do trabalho deve se dar após a admissão, sendo que medida contrária significa discriminação da pessoa com deficiência, sendo ademais, sempre da empresa o ônus de provar que não existiu discriminação. Sendo dever da empresa sempre buscar, na criação e melhoria do ambiente de trabalho, a utilização de instalações e equipamentos de desenho universal, ou seja, aqueles que serão utilizados por todos os trabalhadores, de forma igualitária, sem nenhum tipo de barreira.

Apenas quando não for possível a adoção do desenho universal, se utilizará do conceito central de acessibilidade. Isso se dá pela alteração profunda introduzida pela Convenção Internacional da Pessoa com Deficiência de 2007, da ONU, e pela Lei Brasileira de Inclusão, o Estatuto da Pessoa com Deficiência, que deslocou o próprio conceito de deficiência, da pessoa física para uma visão relacional, instituindo a analise biopsicosocial, (art. 1º da Convenção da ONU – CDPD e art. 2 da LBI) com o entendimento de que as barreiras e limitações à inclusão e integração da pessoa não estão exclusivamente nela própria, mas na sociedade e no mundo na qual está inserida. O conceito de que a pessoa tem um impedimento, o que somente e tornará deficiência em sua relação social, se o impedimento não for removido. Assim, cabe à sociedade tornar possível tal inclusão e como consequência coloca no centro da discussão as formas de acessibilidade, que não são exclusivamente as físicas, de eliminação das barreiras e fornecimento de meios – mecânicos, humanos ou animais de integração, mas dando-se especial relevo às mudanças de atitudes, de acolhimento e solidariedade o que no mundo do trabalho implica especialmente em mudanças organizacionais nas empresas– estabelecendo se necessário novos fluxos de tarefas, tempos de recuperação, redução de agressões externas e investimento em transporte, segurança e saúde, o que evidentemente beneficia também as demais pessoas.


Implica também em capacitação dos demais trabalhadores e chefias, para a plena compreensão e alteração de comportamentos para tornar o meio ambiente do trabalho apto à permanência e realização da produtividade da pessoa com deficiência. Para tanto, a Convenção da ONU dos Direitos da Pessoa com Deficiência define no art. 2 os conceitos de acessibilidade e adaptação razoável – “modificações e ajustes necessários e adequados que não acarretem ônus desproporcional ou indevido, quando requeridos em cada caso, a fim de assegurar que as pessoas com deficiência possam gozar ou exercer, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, todos os direitos humanos e liberdades fundamentais”[4].


O mesmo dispositivo estabelece que a recusa de adaptação razoável constitui-se em ato de discriminação. Sem aprofundamento desta matéria, para o objeto ora em análise é importante destacar que a adaptação razoável é aquela que permite à pessoa o desenvolvimento do trabalho com dignidade, sem humilhações ou discriminação e que, sendo ônus do empregador arcar com custos dela decorrente - e sempre algum haverá, a única limitação será o ônus desproporcional. Este conceito aberto sempre dependerá – no caso de ações judiciais, da ponderação do caso concreto posto ao exame do judiciário, entretanto se pode avançar no sentido de que será aquele de tal monta financeira ou social que poderá acarretar risco à própria existência do negócio, o que certamente deverá ser provado pelo empregador, por se tratar de condição excetiva da regra geral de inclusão e promoção da acessibilidade.

Outra questão relevante para a manutenção do emprego é a garantia de tratamento igual em todos os campos da relação de emprego, assim como da participação sindical e associativa e o direito da pessoa com deficiência ser sempre ouvida em relação às decisões que lhe dizem respeito, além de sempre ser garantido à pessoa com deficiência condições de ascensão profissional, em ambiente seguro e saudável (Convenção da ONU, art. 27)


O artigo 37 da Lei Brasileira de Inclusão dispõe como parâmetros para a inserção da pessoa com deficiência no mercado de trabalho a colocação competitiva em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, o que é possível com o fornecimento de recursos de tecnologia assistiva e adaptação razoável no ambiente de trabalho e por meio do trabalho apoiado. Consequência deste dispositivo, combinado com a vedação da discriminação e a função social da propriedade, de estatura constitucional, é a vedação da exigência de aptidão plena para o cargo, sendo que esta somente poderá ser validada no decorrer do contrato – nunca na seleção para a contratação – e eventual incompatibilidade deverá acarretar alteração de função ou alteração suficiente do meio ambiente não se admitindo seja causa de rescisão do contrato.



3. DEMISSÃO – GARANTIAS LEGAIS – MANUTENÇÃO DA COTA E DIREITO DE DEMITIR.

Quanto a esta matéria destaque-se inicialmente que a grande maioria dos processos ajuizados se constitui em processos individuais, em que os autores são as próprias pessoas com deficiência dispensadas.


Dito isso é importante balizar que quando se trata de rescisão do contrato é necessária a observação de que a Constituição da República estabelece, como regra geral, no artigo 7º, I, a “relação de emprego protegida contra a dispensa arbitrária”, nos termos de lei complementar. É certo que a Lei Complementar não foi produzida, prevalecendo como compensação para a rescisão sem justa causa, além do direito ao aviso prévio, os demais previstos na CLT, lei do FGTS e do seguro desemprego.


Ocorre que a regra geral da proteção contra a despedida arbitrária, ainda que não resulte em garantia de emprego, deve ser considerada como eixo principal interpretativo e de balizamento dos valores constitucionais para relações de emprego em que o trabalhador ou a trabalhadora estejam em situação de proteção legal especial, como no caso de portadores de doenças graves, vulnerabilidades que resultem em discriminação e pessoas com deficiência.


Assim, nestes casos, mas não exclusivamente neles, o poder potestativo do empregador em demitir é em muito mitigado, o que no nosso entendimento resulta no dever de motivar a demissão, na mesma medida da motivação de dispensa de empregados públicos concursados, com a comunicação inequívoca ao empregado no ato da dispensa, a fim de que seja afastada, com objetividade e transparência, a ocorrência de dispensa discriminatória e a inobservância do dever de acomodar – ou na terminologia da legislação nacional – tornar acessível o ambiente de trabalho e ainda de manter o cumprimento da cota legal. Ressalve-se que não se trata aqui da dispensa por justo motivo, evidentemente.


E quanto à dispensa propriamente dita, existem duas hipóteses a ser examinadas: a primeira no caso da empresa cumprir a cota, ou ter número superior a ela de empregados com deficiência, o que é sempre desejável.

Neste caso, o artigo 93 da Lei 8.213/91 estabelece o mecanismo para que não haja redução do número mínimo de empregados com deficiência e instabilidade no sistema, com a colocação da empresa em situação de ilegalidade, no seu parágrafo 1º, que estabelece que a dispensa só poderá ocorrer após a contratação de outro trabalhador com deficiência ou reabilitado. Destaque-se o requisito temporal: a dispensa deverá ser sempre precedida de nova contratação e observe-se que a lei não exige que o trabalhador contratado seja portador do mesmo tipo de deficiência e não mais exige que ocupe a mesma função que o demitido na atual redação dada pela Lei 13.146/2015. A motivação clara neste caso é a manutenção da cota sem solução de continuidade. Em caso de descumprimento, a reintegração do trabalhador ou trabalhadora é medida que se impõe. Ainda que tenha ocorrido contratação de outro trabalhador no interstício entre a demissão do primeiro e a sua reintegração e ainda que a empresa, com a reintegração, ultrapasse o número mínimo legal da reserva de vaga.


A segunda hipótese é a possibilidade de dispensa no caso em que a empresa não tem a cota preenchida. Nesse caso, sob a nossa ótica, a dispensa é ilegal e a reintegração é o único caminho adequado. De fato, a simples verificação do artigo 93 da Lei 8.213/91 em sua integralidade e topografia indica que ele garante em primeiro lugar o número mínimo de reserva de vagas sendo possibilidade do parágrafo primeiro sempre dependente do cumprimento do caput e de seus incisos. Além disso, esta conclusão se encontra de acordo com a proteção especial conferida pela Constituição às pessoas com deficiência e com a obrigação empresarial de cumprir a sua função social e finalmente se constitui no mecanismo mais eficaz para possibilitar à empresa o cumprimento de sua obrigação legal. O trabalhador ou trabalhadora deverá ser mantido no emprego até que a cota seja cumprida, quando o empregador, se assim quiser, se utilize da prerrogativa do parágrafo único, de proceder à dispensa, desde que antes tenha contratado outra pessoa com deficiência e motive a rescisão.

4. CONCLUSÃO:

A título de observações finais destaca-se que segundo a estimativa da ONU, em 2015, na Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, 80% das pessoas com deficiência no mundo se encontram na linha da pobreza ou abaixo dela. (artigo 23). Quanto se pensa em inclusão e não se pode deixar de levar em conta os grupos sociais que somam em seus corpos várias camadas de exclusão e preconceito, como mulheres, pessoas LGBTS, negros e pardos, em razão de idade, origem e território, entre outras.


A Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, da ONU reconhece expressamente que mulheres e meninas com deficiência estão mais sujeitas a violência, com maiores riscos, no lar ou fora dele, a descaso, abuso, maus tratos, explorações ou negligencia – a Convenção destaca a necessidade de incorporar perspectiva de gênero, sendo que a nossa sociedade precisa avançar neste tema com inclusão de efetivas atitudes antidiscriminatórias no cotidiano do mundo do trabalho, em uma luta diária estejam ou não entre estes grupos de vulnerabilidade, sendo a noção de solidariedade e fraternidade os motes principais.

A inclusão no mercado de trabalho é um imperativo civilizatório e democrático da sociedade, e implica em desenvolvimento social e econômico, com redução das desigualdades social e avanço da sustentabilidade.


A inclusão de uma pessoa com deficiência tem um efeito concêntrico, que impacta a melhoria de vida da própria pessoa, de eventuais cuidadores, familiares e seu círculo social, mas também a dos colegas de trabalho, chefias e toda a organização empresarial, tendo reflexos importantes em um mercado consumidor cada vez mais atento e exigente, o que coloca tais empresas em posição vantajosas com efeitos diretos na aceitação do público e a sua própria lucratividade;


É necessário o reconhecimento e fortalecimento das entidades representativas dos trabalhadores e empregadores, com participação efetiva das pessoas com deficiência, para garantia de direitos e interlocução privilegiada nos conflitos trabalhistas, bem como o combate ao dumping social promovido por empresas que não cumprem a lei.

A redução da desigualdade é tarefa de toda a sociedade que deve zelar pelo cumprimento da regra constitucional da proibição de retrocesso social, adotando-se os lemas da Agenda 2030 e da Convenção Internacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência: Não deixar ninguém para trás e Nada de nós sem nós.


Base Bibliográfica:


Legislação:


AGENDA 2030 PARA O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL – ONU, 2015 – www.agenda2030.com.br


CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988 – www.planalto.gov.br


CONVENÇÃO INTERNACIONAL SOBRE OS DIREITOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA – ONU - DECRETO 6949/2008 VIGÊNCIA E PROTOCOLO FACULTATIVO. – www.planalto.gov.br


CONVENÇÃO 159 DA OIT – REABILITAÇÃO PROFISSIONAL E EMPREGO DE PESSOAS DEFICIENTES – 1985 – Decreto 129, de 22.maio.1991 – www.planalto.gov.br


DECRETO-LEI Nº 5.452, DE 1º.MAIO.1943 – CONSOLIDAÇÃO DAS LEIS DO TRABALHO – www.planalto.gov.br


LEI 8.213/1991, de 24.julho.1991 – www.planalto.gob.br


LEI 13.146/2015 – LEI BRASILEIRA DE INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA, DE 6.julho. 2015 – www.planalto.gov.br


PACTO INTERNACIONAL DOS DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS – ONU, 1966 – Decreto 591 de 6.7.1992 – www.planalto.gov.br


PACTO INTERNACIONAL SOBRE DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS, ONU, 1966 – Decreto 592 de 6.7.1992 – www.planalto.gov.br



Doutrina:


MARTEL, Letícia de Campos Velho: Adaptação Razoável: O novo conceito com as lentes de uma gramática constitucional inclusiva, SUR. Revista Internacional de Direitos Humanos, vol. 14, jun.2011 – São Paulo.


SILVA, Otávio Pinto e, CÉZAR, Kátia Regina: Trabalho da pessoa com deficiência, aula ministrada em curso de especialização – FDUSP, 2018, São Paulo.



Outros sítios na rede mundial de computadores consultados:


Câmara dos Deputados - www.camara.leg.br


Fundação SEBRAE - www.sebrae.com.br


Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE - www.cnae.ibge.gov.br, acessado em 7 de dezembro de 2020

[1] www2.camara.leg.br . acessado em 7.dezembro.2020 Legislação Informatizada-Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015 - Veto [2] www.sebrae.com.br, acessado em 3 de dezembro de 2020 [3] www.cnae.ibge.gov.br, acessado em 7 de dezembro de 2020 [4] www.planalto.gov.br /decreto nº 6949 acessado em 30.novembro.2020


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Este artigo foi elaborado a partir de palestra realizada em 4/12/2020 na Conferência e Exposição Nacional de Inclusão e Acessibilidade das Pessoas com Deficiência – RECONECTA - MPT

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Silvana Abramo Margherito Ariano é desembargadora do Trabalho do TRT 2 e membra da Academia Paulista de Direito do Trabalho, ocupando a cadeira 34.

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Os artigos assinados não representam posições da Academia Paulista de Direito do Trabalho, refletindo a diversidade de visões relevantes abrangidas pelo tema e pela APDT.

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Os artigos assinados e notícias reproduzidas com respectivas fontes não representam posições da Academia Paulista de Direito do Trabalho, refletindo a diversidade de visões relevantes abrangidas pelo tema e pela APDT.

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