Por Rafael E. Pugliese Ribeiro, no ConJur, 13/04/2021
Uma língua viva é uma língua em constante evolução, em transformação, acompanhando os fatos sociais do seu tempo, com os quais guarda coerência e relação. A língua serve à comunicação do povo e à cultura da sua era. O estilo acaciano que levava o personagem Acácio, de Eça de Queirós ("O Primo Basílio"), a se referir ao rei como El-Rei, sempre levantando-se um pouco da cadeira ao pronunciar esse vocativo e encenando gesticulação harmoniosa e estancada como um soldadinho de chumbo, não tem lugar na cultura dos novos hábitos sociais. Mudam-se os valores sociais, mudam-se as convenções, e a língua vai sendo influenciada com novas terminologias e novos significados. Seria impensável que um anunciador de espetáculos subisse ao palco de um teatro dos dias modernos gritando repetidamente "acta est fabula", para informar à assistência que "o espetáculo chegou ao fim", como se fazia no Coliseu de Roma. Na língua portuguesa não temos nenhuma palavra equivalente a brunch (o meio-termo entre café da manhã e almoço) ou outplayer (o que se saiu melhor no jogo), e, embora tenhamos a palavra "apagar", também utilizamos "deletar", derivada do inglês delete.
O que se tem incluído no rótulo geral de "amigo" ao longo do tempo abrange muitas formas de amizade. Na palavra "amigo" se tem considerado o amigo por afeto, a amiga como amante, o amigo camarada, a amiga admiradora, o amigo vizinho, a amiga simpatizante de uma causa, o amigo de boteco, a amiga confidente, o amigo do amigo, a amiga do tênis, o amigo do ambiente de trabalho, o amigo garçom, entre outros, além do "amigo" nas expressões figuradas, como o "amigo da onça" ou até o "amigo do alheio". Bem se vê a vasta multiplicidade de uso e variadas acepções habilitadas à palavra.
Com o surgimento de um novo "meio social" dito virtual, surgiu também uma nova configuração, digamos, de relacionamento humano, não necessariamente físico, mas virtual, não necessariamente próximo, mas remoto, para o qual não se tem um nome próprio na língua portuguesa. Falta-nos uma palavra própria para isso, que não precisasse ser composta com a matriz "amigo". No inglês se utiliza a palavra keypal para expressar as formas virtual friend, internet friend, online friend, email friend.
À ausência de uma classificação mais exata para esse novo modelo de relacionamento humano passou-se a rotulá-lo também como "amigo", mas com uma qualificação composta como "amigo virtual" (do inglês virtual friend), ou seja, o amigo com quem não se tem um relacionamento próximo, presencial, habitual, íntimo e de confiança, mas que figura num dado rol de pessoas como potenciais contatos por via exclusiva ou marcadamente virtual.
Nada disso muda a essência da alma da lei, naquele substrato de valor jurídico que adensa o conceito de "amigo" como motivo para uma suspeição. O sujeito não é suspeito simplesmente porque é amigo da parte. Ele é suspeito porque, como amigo, desenvolveu um relacionamento pessoal próximo, direto, presencial, frequentando a vida privada, detendo uma estima pessoal mais qualificada, uma consideração diferenciada, mais elevada, que constrói uma conduta de proteção do outro, mesmo que a qualquer custo.
O amigo, no conceito legal que leva à suspeição, é a pessoa por quem se nutre um sentimento e uma concreta disposição de agir em prol da sua preservação, formando um certo interesse de ver esse amigo isento de qualquer mal, congratulando-se com ele por suas vitórias e sofrendo com ele por seus revezes. É uma construção natural da convivência íntima. É ele, numa expressão mais popular para a condição de amigo íntimo, o "amigo do peito".
O código legal de uma "amizade íntima" (CPC, artigo 145, I; artigo 447, §3º I; CLT, artigo 801, "b") — que não é, evidentemente, a intimidade sexual! — propõe exatamente um sentido de qualificar ("íntima") o conceito substantivo ("amizade"), como fator apto ao afastamento de uma acepção mais comum, mais distante dos valores jurídicos. Não se enquadram nessa segregação legal o amigo virtual, o seguidor de redes sociais ou o membro de grupos de plataformas digitais de qualquer espécie.
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Rafael E. Pugliese Ribeiro é Magistrado desde 1988. Desembargador do Trabalho. Ex-Vice Presidente Judicial do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região. Ordem do Mérito Judiciário. Ex-Presidente da Seção de Dissídios Coletivos do Tribunal de São Paulo. Membro do Órgão Especial. Escritor. Palestrante. Membro da Academia Paulista de Magistrados. Membro da Academia Paulista de Direito do Trabalho - APDT, titular da cadeira nº 23, que tem como patrono Délio Maranhão.
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Os artigos assinados e notícias reproduzidas com respectivas fontes não representam posições da Academia Paulista de Direito do Trabalho, refletindo a diversidade de visões relevantes abrangidas pelo tema e pela APDT.
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