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Plataformas digitais de trabalho: evolução, conjuntura e regulamentação


1. INTRODUÇÃO O presente artigo busca apontar algumas questões relevantes relativas ao trabalho em plataformas digitais a partir do exame do seu locus no atual estágio do capitalismo e algumas de suas contradições, o exame dos polos dos agentes envolvidos nesta relação de trabalho e sua juridicidade, com vistas a contribuir com a construção coletiva do estudo, avaliação e reflexão sobre as imbricações entre o trabalho em plataformas digitais e o Direito do Trabalho no Brasil.

2. CONJUNTURA E ESTÁGIO DO CAPITALISMO Em rápido apanhado histórico, a partir da segunda metade do século XVIII, o sistema capitalista vai se tornando hegemônico nas sociedades ocidentais, em substituição gradual das manufaturas, para, a partir do século XIX, se estabelecer na forma de fábricas, cada vez maiores, impulsionando o comércio para além das fronteiras das rotas então existentes, especialmente as coloniais com as Américas e o oriente e de tráfico de pessoas escravizadas de origem africana.

Até o início do século XX a organização do capital em fábricas se torna o modelo dominante no capitalismo, sendo que ao longo do século ocorre acelerado processo de migração da produção de bens para a financeirização do sistema em escala global,com o deslocamento territorial das indústrias dos países centrais para os periféricos. No Brasil, o desenvolvimento industrial hegemônico se dá entre as décadas de 30 e 80 do século XX, com as indústrias de base e, em seguida, com bens de consumo duráveis e não duráveis,com destaque para a indústria automotiva, ao lado da industrialização na produção agrícola.

A utilização de mão de obra livre – não escravizada, assalariada, em grande escala e o poder de gestão e mando do empregador, com vistas ao aumento ilimitado de lucros, tem como resultado o conflito aberto entre as classes sociais, a criação de novas formas de representação dos trabalhadores, em especial o sindicalismo e partidos políticos, e a consequente convocação do Estado para proceder à regulamentação das relações de trabalho. Esse processo se dá em variados graus de atendimento de demandas dos trabalhadores, de acordo com suas forças organizadas no mundo do trabalho, e na política institucional.

Quanto se trata da forma de organização do capital industrial e suas estruturas relacionais com os trabalhadores, em níveis sobrepostos de convivência e com hegemonia sucessiva do último sobre o primeiro, pode-se adotar os modelos do fordismo e toyotismo como base de análise das transformações ocorridas nos últimos quarenta anos, com maior acirramento a partir dos anos 90 do século vinte.

No primeiro, a fábrica de automóveis Ford é o paradigma da instalação de grandes “plantas”, ou estabelecimentos, com milhares de trabalhadores que atuam em linhas de produção, sob rígido controle de horários, funções e disciplina, com fracionamento das tarefas e onde a produtividade é parametrizada em função da rapidez do trabalhador e do tempo da jornada - intensidade e extensão, em aplicação e ampliação da potência dos métodos desenvolvidos por Taylor.

Com a industrialização e a exploração do trabalho em colônias e ex-colônias e com a dominação internacional da economia e da política pelos Estados Unidos da América, após a segunda guerra houve a reconstrução de países europeus devastados e a criação, em parte pelos países centrais do ocidente, de sistemas de bem estar social, promulgação de Constituições sociais e institucionalização do movimento social dos trabalhadores com a atuação de sindicatos fortes e representativos.

Na sequência histórica, a partir da década de 70 do século XX no ocidente, com a crise econômica do petróleo e, a partir da década de 90, também no Brasil, ocorreu reorganização da produção, com as indústrias passando por uma acelera- da e profunda alteração, adotando o modelo japonês estandardizado pela fábrica de automóveis Toyota, com priorização da redução do quadro de trabalhadores, a flexibilização das funções e a adoção do lema de qualidade total, eliminação dos estoques e produção sob demanda, com a externalização de atividades, a estruturação de cadeias de produção em que as empresas fornecedoras passam a produzir, quase que exclusivamente, para as empresas principais, com a customização dos produtos para atender às necessidades daquelas, e o acirramento da terceirização das atividades meio.

Nesse cenário a atuação dos sindicatos de trabalhadores é claramente combatida com a instalação de cultura de adesão pessoal dos trabalhadores aos interesses das empresas e atos antisindicais com vistas à interdição de filiação e pulverização da representação. A partir de então, cada vez mais a fragmentação empresarial e a criação de holdings extremamente lucrativas se impõe, com uma pressão econômica e legislativa fortíssima, culminando no Brasil com o reconhecimento pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADC16, da possibilidade ampla de terceirização de mão de obra, inclusive nas atividades fins, e a edição das Leis nos 13.429/17 e 13.467/17.

Ao lado disso, a progressiva hegemonia do capital financeiro, desterritorializado e concentrado e viabilizado pela crescente utilização das tecnologias digitais de conhecimento - processo que tem como marco a primeira reunião em Davos, em 1971 em que foi criado o Fórum Econômico Mundial, desenvolve-se cada vez mais rapidamente, atingindo novo patamar nas duas primeiras décadas do século XXI.

A enorme evolução tecnológica computacional e de inteligência artificial, a adoção de trabalho robotizado que substitui postos de trabalho a criação de sistemas remotos de aferição e acompanhamento da produtividade e, cada vez mais, o deslocamento da tomada de decisões e gerenciamento da atividade econômica para os sistemas virtuais, por meio de algoritmos desenvolvidos, centralizados controlados pelas grandes empresas, resulta no aparecimento da chamada 4ª Revolução Industrial ou Capitalismo de Vigilância. O mesmo movimento se dá no setor terciário, de serviços e comércio, destacando-se a internet das coisas, a robotização avançada e as plataformas de serviços e de relacionamento social, em um movimento universalizante e global.

Esses processos reduzem a necessidade de espaços físicos geográficos, rom- pendo com as fronteiras estatais e transformando profundamente a forma de organização do trabalho, extinguindo, mais uma vez inúmeros postos de trabalho humano, criando outros de baixa qualificação e alta instabilidade, o que no polo oposto,facilita a comunicação entre trabalhadores por meio da rede mundial de computadores e possibilitando o desenvolvimento de organizações e movimentos sociais autônomos que cada vez mais alcançam protagonismo e se fortalecem para apresentar suas demandas.

Importante destacar que estas várias formas de organização da produção estruturantes do sistema capitalista se mesclam e se encontram presentes e prevalentes umas sobre as outras, em espaço e tempo, criando um caldo de cultura que perpassa toda a sociedade. Influencia-se o modo de pensar dos próprios trabalhadores, induzindo a uma visão totalizante de impessoalidade, inevitabilidade e da crença na necessidade do desenvolvimento tecnológico excludente, da qual somente o pensamento crítico e cientificamente fundamentado, em apoio ao movimento organizado de trabalhadores, poderá se contrapor, no sentido de desafiar a desigualdade e a pobreza produzida pelo sistema econômico e em busca de alternativas humanizantes.


3. EMPRESAS 4.0 E PLATAFORMAS DIGITAIS Para o presente estudo,importa a verificação das características principais das chamadas empresas 4.0, que se afiguram como uma mudança estrutural do sistema produtivo, deslocando a produção de bens e serviços para processos de coleta e tratamento de dados, que se transformam em mercadoria altamente lucrativa, mantendo-se o sistema de concentração do capital, de realização de lucro e a manutenção dos meios de produção nas mãos do empresário, com o estabelecimento de uma economia da abundância para poucos indivíduos.

Destaca-se que existem seis tipos de plataformas, na classificação de CARELLI, sendo que todas se utilizam, em maior ou menor escala,de processos analógicos ao lado dos de tecnologia da informação, e todas dependem de muitos trabalhadores, invisibilizados socialmente. As primeiras se estabeleceram como plataformas de e-comerce, em que, num espaço virtual determinado, são alocadas diversas empresas distintas, com o incremento dos serviços físicos de logística - distribuição e transporte de mercadorias.

Também se destacam as empresas de tecnologia da informação, que dependem do trabalho de microtarefas e as que prestam serviços. Nas plataformas de microtarefas, denominadas crowdsourcing, o trabalho é postado na rede mundial de computadores, em leilões que concorrem uma multidão de trabalhadores para realizar tais tarefas, fracionadas em pequenos atos,que podem ser de caráter intuitivo para um humano, como identificar fotografias ou endereços, até as mais qualificadas, de caráter científico. A empresa oferece o trabalho específico a ser realizado, que pode ou não ser utilizado posteriormente para o desenvolvimento de produtos ou, ainda, constitui-se no próprio produto.Nessa forma de trabalho não há nenhuma territoriedade definida, nem seleção prévia de trabalhadores, que recebem o pagamento pela tarefa realizada somente se ela for aceita pela empresa.

A plataforma de serviços se constitui, em sua essência, em empresa de prestação de serviços, e não como muitas se apresentam, como “empresas de tecnologia”, vez que na verdade sua finalidade e lucratividade se vinculam diretamente aos serviços prestados. Tratam-se das plataformas de entregas e transporte, como por exemplo a Uber e as ligadas ao setor alimentício, como a Ifood e Rappi. Esse tipo de empresa depende de grande número de trabalhadores para a realização do lucro. ABILIO destaca que se trata de um processo de monopolização e que leva à extinção das empresas de entrega tradicionais, sendo que essas novas plataformas têm o domínio exclusivo de seus processos e dados, não havendo controle estatal ou social sobre eles, com ausência de transparência, sendo os seus códigos fonte são considerados segredo do negócio, acarretando em custos mínimos.

O grande desafio é a regulação da atividade, que no Brasil segue à margem de maior controle estatal. O modelo de gestão de trabalho é de absoluta precarização, não existindo trabalha- dor com vínculo empregatício na prestação dos serviços, com transferência dos custos das ferramentas de trabalho para o trabalhador (carro, bicicletas, bag, celular, entre outros), com fixação unilateral e variável do valor pago pelo trabalho, sempre por tarefa.

A Plataforma atua em termos ideológicos e culturais desenvolvendo e utilizando a disseminação de mitos que pretende transformar em verdades indiscutíveis de modernidade, com disrrupção dos anteriores padrões de relacionamento com a sociedade. Em tal cenário, incluem-se as empresas que são intermediadas, os clientes e os trabalhadores, promovendo uma distorção da linguagem ao se utilizar dos termos “colaboradores”, “usuários”, “empreendedores”, “prêmios”, entre outros. Essa distorção provoca um apagamento do sentido de identificação do trabalhador como tal e mistificação e despistamento da real atividade econômica das empresas,que se apresentam como do segmento de tecnologia e negam se identificarem como prestadoras de serviços.

4. TRABALHADORES EM PLATAFORMAS. Pesquisa realizada pela Faculdade de Economia da Universidade Federal da Bahia, com relatório publicado em agosto de 2020, constatou que o perfil majoritário dos trabalhadores em plataformas de entregas é de homens jovens, que trabalham em média 64,5 horas semanais em 6,16 dias por semana,recebendo em média dois salários mínimos, sendo que 33% dos entrevistados declarou já ter sofrido acidente de trabalho.

A importância econômica do trabalho em plataformas pode ser estimada quando a empresa Uber, em seu sitio na rede mundial de computadores informa que foi criada em 2010 e conta, no Brasil com 1 milhão de motoristas e entregadores. O controle e gerenciamento do trabalho por algoritmos, programados para a maximização dos lucros, permite a manipulação da oferta de trabalho de acordo com a demanda,horários, locais e preferências dos clientes dos serviços, sendo que a falta de transparência desta programação permite intuir que há escolha de trabalhadores em razão de seu perfil pessoal, com possível discriminação de negros e mulheres, tipos de veículo e marcas de carros, denotando escolha por padrão econômico, social e cultural dos trabalhadores.

O pagamento de valores variáveis de remuneração ao longo dos períodos do dia, distância e progressiva redução da remuneração mensal destes trabalhadores na medida em que aumenta a oferta de mão de obra, em especial durante a pandemia por Coronavírus, aliada ao estímulo à realização de longas jornadas por meio de premiações e ofertas de corridas ou entregas no final do dia, induz o trabalhador a estendera jornada, por vezes até 14 ou 15 horas diárias.


Historicamente, o pagamento por produção é fator que favorece a superexploração do trabalho alheio. O valor mal remunerado da tarefa, o incentivo à maior produtividade por meio de prêmios e a ausência de limitação externa do tempo de trabalho, seja por regulação estatal ou empresarial, levam o trabalhador a excessos desmedidos, tudo em busca da sobrevivência. A situação se identifica com anterior contexto dos cortadores de cana, costureiras em oficinas ou residências, muitas vezes imigrantes, motoboys e entregadores.

Há na doutrina quem se refira a ocorrência de autoexploração. Sob a nossa ótica a exploração se refere, conceitualmente, sempre à existência do outro, em situação de alteridade, e em relação à intencionalidade se dá a partir do beneficiado da relação, que detém o poder de estabelecer o preço, sendo o trabalhador responsivo e não ativo. Não há livre arbítrio nesta relação, determinada pela necessidade de um e benefício do outro.

Em definição de MARINI, que se refere às relações macro econômica, mas que pode ser aplicada também às relações interpessoais individuais, a superexploração corresponde a “uma situação na qual os salários pagos aos trabalhadores são inferiores ao valor da força de trabalho, impedindo que essa classe se reproduza em suas condições normais”.

Tal se dá em relação à força física e mental do trabalhador, seja no âmbito pessoal, quanto coletivo, e tanto pela extensão do tempo de trabalho quanto pela intensificação da produção e redução do consumo próprio necessário à manutenção de sua vida (gastos com alimentos, vestuário, transporte, saúde, entre outros) pelo trabalhador, ou de todas simultaneamente, em “ruptura da relação entre a remuneração do trabalho e seu valor real, ou seja, entre o que se considera como tempo de trabalho necessário e as necessidades de subsistência efetivamente apresentadas pelo trabalhador”.

É o que ocorre com os entregadores de alimentos nas grandes cidades brasileiras, que trabalham para várias plataformas com vistas a reduzir os tempos de espera entre a atribuição de trabalho, com o conhecimento e anuência das empresas de plataforma, em longas jornadas que incluem finais de semana e feriados, com intensificação do trabalho nos horários que são culturalmente destinados ao repouso dos demais trabalhadores, rompendo com os ciclos individuais de alimentação e descanso.Trabalhadores que, em sua maioria,são moradores das periferias das cidades e em razão da distância muitas vezes não retornam às suas residências ao término da jornada, passando a dormir e se alimentar nas ruas, sempre em estado de alerta quanto à violência urbana.

Tal sistema de trabalho induz a número elevado de acidentes, inclusive fatais, e

desenvolvimento de doenças, tendo chegado a ocasionar mortes por exaustão, como já documentado em casos de cortadores de cana.

Esses trabalhadores se constituem em categoria, no interior da classe trabalhadora, que ultimamente pode estar alterando sua auto percepção de base individualista, sob o mito do empreendedorismo, para compreender a necessidade de construção de uma identidade coletiva para a regulação das suas condições de trabalho. Exemplo de processo que demonstram uma tomada de consciência de tal cenário são os chamados “breques dos apps” ocorridos a partir de meados de 2020, no qual entregadores, de for- ma independente dos sindicatos constituídos, inclusive os de motoristas entregadores, ou ao lado destes, foram capazes de produzir uma pauta mínima, unificada, no contexto da pandemia, voltada às empresas que operam com plataformas digitais de entregas, o que por si só descortina os polos opostos de capital e trabalho, em desmistificação da ideologia do empreendedorismo. Interessante notar, quanto à ação coletiva dos entregadores, a constituição de diversos coletivos que produzem propostas variadas de regulação de seu próprio trabalho, como por exemplo as propostas de cooperativas.

5. QUALIFICAÇÃO JURÍDICA. Para responder à questão central para a ciência do Direito do Trabalho, de se já existe ou qual a regulação seria mais adequada, devem ser considerados os fatos, acima alinhavados em brevíssima análise, em confronto com o arcabouço normativo existente e os parâmetros e princípios Constitucionais e das normativas internacionais, na busca de dar efetividade ao Estado Democrático de Direito e ao Bem Estar Social. Rejeita-se de plano a possibilidade de estabelecimento de normativas que rebaixem o patamar jurídico e social dos trabalhadores em plataformas digitais, não se admitindo igualmente a perpetuação de uma camada de trabalhadores e de empresas que se colocam fora do sistema jurídico de controle e proteção.

De início, registre-se que há uma variada gama de formas de relações existentes entre trabalhadores e os diversos tipos de empresas por plataformas digitais e mesmo ausência de uniformidade nos modos de prestação de trabalho em uma mesma empresa. No entanto,este fato não apresentará nunca óbice para a regulação da atividade pelo Estado, nem para a apreciação da matéria pelo Judiciário Trabalhista – cuja competência, apesar da disputa de narrativas, deve ser afirmada em respeito ao artigo 114, da Constituição da República.

A estrutura doutrinária, normativa e jurisprudencial do Direito do Trabalho, apesar de construída originalmente em fase do desenvolvimento capitalista anterior a presente, nas muitas vezes denominadas primeira e segunda revoluções industriais, sob a hegemonia do Fordismo, tem demonstrado plasticidade suficiente para fazer frente às novas formas de organização do trabalho, ou no dizer de ANTUNES,da nova morfologia do trabalho. O mesmo se dá quanto à necessidade de regulação estatal nos âmbitos fiscais e comerciais.

É que os conceitos básicos da relação de emprego como modelo universalizante se prestam para o exame da realidade atual do trabalho em plataforma, desde que sejam apreendidos em sua essência e função, em detrimento da forma habitual redutora utilizada, muitas vezes, nos tribunais pelas partes e pelos julgadores. Para esta finalidade, interessa o aprofundamento do conceito de subordinação e o exame das particularidades fáticas vinculadas à pessoalidade e habitualidade.

A onerosidade estará sempre presente, com exceção das plataformas que se limitam a oferecer espaço de divulgação de serviços, em que o trabalhador é que precifica seu trabalho ou produto e nas organizações cooperativa das e há sempre o trabalho por alteridade, por conta alheia,vez que parte do valor do trabalho é apropria- do pela empresa de plataforma.

Ainda que o argumento empresarial seja o de que não há pagamento do serviço pela plataforma e que é o cliente que pagará o valor, certo é que o trabalhador se vincula à empresa com vistas ao recebimento de remuneração pelo seu trabalho e que o sistema de pagamento operacionalmente direto realizado entre o cliente e o trabalhador não exime a empresa de fixar o preço, obter lucro e dirigir o trabalho.É o mesmo que ocorre com garçons ou vendedores com vínculo empregatício, por exemplo.

Quanto à subordinação propriamente dita, encontra-se presente na determinação algorítmica adotada pela empresa de plataforma, a cujos termos de uso – verdadeiro contrato de adesão - o trabalhador se vincula. Igualmente está presente na distribuição dos serviços, na determinação dos preços e no monitoramento e vigilância constante por GPS, além do controle dos serviços realizados para a finalidade de pontuação.

Para além desses parâmetros, estará presente a subordinação estrutural, aque- la que vincula o trabalho realizado aos objetivos econômicos da empresa, que deverá ser sempre objeto de análise juntamente com os demais elementos, e não como requisito único que fará que toda e qualquer relação de trabalho seja reconhecida como de vínculo empregatício.

É necessária ainda a recuperação, como elemento do vínculo de emprego, do requisito da dependência econômica, perquirindo sempre quem estabelece seu valore a efetiva possibilidade de negociação a esse respeito, além da verificação do fato de que o trabalhador depende de tal remuneração para suprirsuas necessidades vitais.

Na afirmativa se estabelecerá com mais firmeza o conceito da subordinação estrutural, sendo um caminho importante a retomada do conceito econômico da de- pendência como mais um instrumento de aproximação com a realidade, valorizando a origem mesma do direito do trabalho em sua singularidade, além de sempre se proceder à análise da subordinação com elementos fáticos que extrapolem o exame estritamente individual de um determinado trabalhador. Há ainda, quanto à pessoalidade, a questão relativa à situação muito comum de trabalho para mais de uma empresa com plataforma digital. Esta se torna uma questão relevante quando se pensa no estabelecimento de jornadas, entretanto, para a caracterização do vínculo é assente na doutrina a possibilidade de manutenção simultânea de mais de um vínculo empregatício pelo trabalhador, desde que compatível com as jornadas realizadas para cada um deles.

Entendidas estas jornadas não como horários fixos de prestação de serviços, mas de trabalho efetivamente prestado, não há óbice ao reconhecimento, mormente porque o trabalho para mais de uma empresa é por elas aceito sem nenhuma oposição, e mais, podendo ser um importante fator de incremento da produtividade para cada uma, ao manter o trabalhador logado e disponível por maior tempo.

Para os casos de trabalho em períodos de tempo variável, não contínuo, coloca-se a questão da habitualidade. O enquadramento na figura do trabalho intermitente não se afigura como o mais adequado. De fato, o próprio trabalho intermitente, instituído pela Lei nº 13.467/17, constitui um movimento de desregulação e precarização do trabalho que se coloca em sentido oposto ao arcabouço legislativo protetivo do direito do trabalho, não sendo adequada a utilização extensiva de seu modelo. Além disso, está com sua constitucionalidade sub judice perante o Supremo Tribunal Federal, em julgamento já iniciado e suspenso por pedido de vista da ministra Rosa Weber em 3 de dezembro de 2020, e com voto do relator,ministro Fachin, pela declaração de inconstitucionalidade e ministros Nunes Marques e Alexandre de Morais, pela constitucionalidade - ADIs 5826,5829 e 6154. Além disso,admitindo-se a prevalência e a regra geral da existência de relação de emprego, a depender da natureza das relações fáticas de cada caso concreto, poderá haver variada gama de trabalhadores que não poderão ser enquadrados como empregados. Apenas a título de exemplo, os que sublocam seus veículos para outros trabalhadores motoristas, realizando pagamentos, motoristas ou entregadores realmente eventuais, trabalhadores organizados em verdadeiras cooperativas, trabalha- dores que oferecem serviços,por eles precificados, em plataformas de divulgação.

6. CONCLUSÃO. NECESSIDADE DE REGULAMENTAÇÃO A questão que se coloca então é relativa à necessidade de nova regulamentação da atividade ou se a legislação existente é suficiente para regular tais relações e solucionar conflitos.

Parte-se do princípio que é inadmissível regulamentação que venha a rebaixaro patamar de direitos já garantidos pela legislação posta, mas reconhece-se que a algumas especificidades das atividades realizadas no âmbito destas empresas, que se utilizam de plataformas digitais para realizar sua finalidade econômica, demanda uma regulamentação.

Tal regulamentação, deve visar a coibir a superexploração e garantir patamar de trabalho digno e decente para todos os trabalhadores, tratando no mínimo, de balizas de remuneração, critérios de aferição de jornadas de trabalho e garantias de horários e dias de descanso; controle do trabalhador sobre as informações relativas ao serviço realizado e o pagamento devido,além de normas específicas de alimentação, higiene,saúde e segurança.

Nesse sentido a Proposta de Consolidação de projetos de Lei sobre Trabalhos por Plataformas Digitais,da ANAMATRA, em anexo, constitui um importante instrumento para o debate social e legislativo, preenchendo os requisitos das questões fundamentais acima examinadas, sendo imprescindível o estabelecido em seu artigo 2º, no sentido de que as normas ali propostas se aplicam tanto aos trabalhadores com vínculo quanto aos sem vínculo empregatício, passando a ser profissão regulamenta- da a de entregadores por aplicativos.

Quanto às questões de direito coletivo importante destacar a posição de GRILLO, no sentido da necessidade de ampla liberdade de associação e de negociação coletiva, ainda que para trabalhadores sem vínculo de emprego reconhecido, bem como a possibilidade de sindicalização com bases territoriais ampliadas diante da especificidade e desterritorialização da atividade em plataformas. Destaque-se ainda a necessidade de regulação para coibição de atividades antisindicais e de lockout.

Diante do exposto, afigura-se imprescindível a sensibilização do legislativo, do sistema de justiça como um todo, da sociedade civil e do executivo para que estejam atentos para a situação dos trabalhadores em plataformas, e unidos com a busca de criação de uma rede de proteção e regulamentação desse tipo de trabalho, bem como pela busca de uma regulação internacional, que possa garantir a dignidade da pessoa humana e o trabalho decente.


7. REFERÊNCIAS


ABILIO, LudmilaCostheek. PLATAFORMAS DIGITAIS, UBERIZAÇÃO DO TRABALHOE REGULAÇÃO DO CAPITALISMO COMTEMPORÂNEO. Contracampo, Niterói, v.39, n.1, pg 12-26, abril/jul.2020


ANTUNES, Ricardo.ADEUS AO TRABALHO?ENSAIO SOBRE AS ETAMORFOSES E A CENTRALIDADE DO MUNDODO TRABALHO. Cortez,São Paulo, 2016


CARELLI, Rodrigo,OLIVEIRA, Murilo e GRILLO, sayonara.CONCEITO E CRÍTICADAS PLATAFORMAS DIGITAISDE TRABALHO. RevistaDireito e Praxis,Rio de janeiro,, v.11, n.4, 2020, p.2609-2634


DELGADO, GabrielaNeves. DIREITO FUNDAMENTAL AO TRABALHO DIGNO. LTr, , São Paulo, 2015.


DELGADO, Mauricio Godinho: CAPITALISMO TRABALHO E EMPREGO. LTr, São Paulo, 2015


LEITE, Márcia de Paula Leite:TRABALHO E SOCIEDADE EM TRANSFORMAÇÃO. Perseu Abramo, São Paulo, 2003


LEME, Ana Carolina Reis Paes: DA MÁQUINA À NUVEM. CAMINHOS PARA O ACESSO À JUSTIA PELA VIA DE DIREITOSDOS MOTORISTAS DA UBER. LTr, São Paulo, 2019


MARINI, Rui Mauro, citado in Franklin, Rodrigo Straessli: O que é super exploração. www.scielo.br, consultado em 11.12.2020.


ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO- OIT. AS PLATAFORMAS DIGITAIS E O FUTURO DO TRABALHO. PROMOVERO TRABALHO DIGNO NO MUNDO DIGITAL.2018. www.ilo.org


UNIVERSIDADE FEDERALDA BAHIA – Faculdade de Economia – Núcleo de Estudos Conjunturais – RELATÓRIO PESQUISALEVANTAMENTO SOBRE OS TRABALHADORES POR APLICATIVOS NO BRASIL, agosto.2020. – www.nec.ufba.br, visualizado em 2.04.2021

www.uber.com, visualizado em 3.abril.2021


____________ Silvana Abramo Margherito Ariano é desembargadora do Trabalho do TRT 2. Foi diretora da Amatra 2 (Associação dos Magistrados do Trabalho da 2ª Região) e da Anamatra (Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho). É titular da cadeira nº 34 da Academia Paulista de Direito do Trabalho - APDT. ____________ Os artigos assinados não representam posições da Academia Paulista de Direito do Trabalho, refletindo a diversidade de visões relevantes abrangidas pelo tema e pela APDT.


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