Por Almir Pazzianotto Pinto, em 19/07/2021, no site Os Divergentes
Pertence à deputada federal Beatriz Kicis Torrents de Sordi, conhecida como Bia Kicis, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que acrescenta o § 12 ao art. 14 da Constituição Federal. Diz a malsinada proposta: “No processo de votação e apuração das eleições, dos plebiscitos e dos referendos, independentemente do meio empregado para o registro do voto, é obrigatória a expedição de cédulas físicas conferíveis pelo eleitor, a serem depositadas de forma automática e sem contato manual, em urnas indevassáveis, para fins de auditoria”.
Como era de se esperar, o texto não se impõe pela clareza. Ignora a advertência de Rui Barbosa, para quem “Se a lei não for certa não pode ser justa. Para ser certa, porém, cumpre que seja precisa, nítida, clara” (Réplica, Ed. Ministério da Educação e Saúde, RJ, 1953, vol. II, pág. 304).
A Justificação, por sua vez, revela a má vontade da autora em relação ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Logo na abertura, sem se preocupar com a falsidade da injúria, escreve: “O Brasil, em questões eleitorais, tornou-se refém da juristocracia (sic) do Tribunal Superior Eleitoral”. No parágrafo seguinte acrescenta: “Apesar do totalitarismo (sic) concentrado no órgão eleitoral, o Congresso brasileiro desde 2001, atento aos avanços do voto eletrônico no mundo, tem buscado acompanhá-lo, para atribuir maior legitimidade e transparência ao sistema eleitoral.
Nada obstante, há anos, o TSE insiste, de maneira obstinada, em não seguir as recomendações e tendências seguidas por todo o restante do mundo democrático”. Refere-se, ainda, ao “boicote que a Corte Eleitoral vem opondo, de longa data, ao processo destinado a criar o chamado ‘rastro de papel” – mediante a obrigatoriedade de impressão dos votos…”
O TSE é integrado por três Ministros do Supremo Tribunal Federal, dois Ministros do Superior Tribunal de Justiça e dois advogados, nomeados pelo Presidente da República, dentre seis juristas de reputação ilibada, indicados pelo STF (CF, Art. 119).
Ministros e advogados, de reputação ilibada e notável conhecimento da lei, teriam se posto sigilosamente de acordo para fraudar eleições municipais, estaduais e federais? Afinal, o que pretende a S. Exa. ao agredir gratuitamente, em documento do Poder Legislativo, órgão do Poder Judiciário?
Registra o historiador Manoel Rodrigues Ferreira, na obra A Evolução do Direito Eleitoral no Brasil, que em 25 de março de 1824, após outorgar a Constituição Política do Império, D. Pedro I convocou eleições gerais “para a Assembleia simplesmente Legislativa”. Prossegue: “Juntamente com a convocação foram expedidas as Instruções para a realização das referidas eleições”. Na visão do erudito escritor, “Estas Instruções de 26 de março de 1824 passavam a ser, pois, a nova lei eleitoral do Brasil.”
Ao longo da nossa História, a legislação disciplinadora de eleições passou por repetidas alterações, até chegarmos à Lei nº 4.737, de 15 de julho de 1965, sancionada pelo presidente Castello Branco e recepcionada, com alterações, pela Constituição de 1988. Da cédula de papel impresso, usada nas eleições de 2 de dezembro de 1945, quando, após a derrubada a ditadura do Estado Novo, o general Eurico Dutra derrotou o brigadeiro Eduardo Gomes, até as eleições de 2018, que deram a vitória ao presidente Jair Bolsonaro, contra Fernando Haddad, o processo eleitoral se aprimorou até chegar às modernas e invioláveis urnas eletrônicas.
Determina a Constituição de 1988, no artigo 14, que “A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos…” Fundamenta-se o regime democrático, portanto, na eleição dos membros dos poderes Legislativo e Executivo, pelo sufrágio universal, mediante voto individual, direto e secreto.
O princípio da publicidade, presente nas legislações eleitorais dos países democráticos, como Alemanha e Índia, determina que todos os passos essenciais da eleição estejam sujeitos à comprovação pública. Assim também se faz no Brasil. Preserva-se, contudo, o sigilo inerente ao voto secreto.
Renego a ideia de que em países livres e democráticos o eleitor se submeta ao risco de ver alguém tomar conhecimento de como e em quem votou. É hipócrita a frase da Justificação, onde a deputada Bia Kicis diz que “o rastro de papel, consubstanciado na materialização do voto eletrônico, é a solução internacionalmente recomendada – exceto pelos técnicos do TSE”. Ninguém ignora que voto rastreável deixa de ser secreto.
A cínica Justificação da autora da PEC não indica um só caso comprovado de fraude, em eleições passadas. É necessário ser idiota para acreditar nas palavras de inimiga do TSE e do sistema eleitoral vigente, pelo qual ela, o presidente Jair Bolsonaro, a Câmara dos Deputados e o Senado Federal se elegeram.
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Almir Pazzianotto Pinto é Advogado. Foi Ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho. Autor de A Falsa República. Presidente de honra da APDT - Academia Paulista de Direito do Trabalho e ocupante da cadeira nº 1.
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