Um importante passo para o fim da precarização do trabalho das plataformas digitais
Por Juliete Lima do Ó, no site do laboratório UERJ Labuta
Após a chegada de novas tecnologias e formas de prestação de serviço, as relações trabalhistas ganharam contornos cada vez mais complexos, podendo chegar a eventuais mitigações de direitos indisponíveis consagrados tanto pela Constituição da República Portuguesa como pelas leis que regulamentam envolvimentos (vínculos) empregatícios formais.
Os modelos de negócios decorrentes da inserção de novas tecnologias voltadas para a prestação de serviços têm ensejado importantes discussões na seara dos direitos sociais. Nesse aspecto, destacam-se as relações que se estabelecem entre trabalhadores plataformizados e as empresas que detêm a tecnologia aplicativo/algoritmo que realiza a intermediação entre estes trabalhadores e o público consumidor dos serviços. Essas relações carecem de uma regulamentação própria capaz de assegurar a esses trabalhadores o acesso a direitos mínimos assegurados pela Constituição.
Nesse sentido, Portugal encontra-se atualmente, em conjunto com a Comissão Europeia e a Organização Internacional do Trabalho (OIT), em vias de reconhecer os direitos, bem como a proteção aos trabalhadores que laboram para empresas de plataformas digitais, tais como Uber, Glovo, Deliveroo, que são aplicativos de entrega de comidas e outros bens de consumo (como podemos citar também o Ifood e o Rappi, populares no Brasil) entre outros, apesar de existirem inúmeras plataformas na União Europeia com diversos serviços, algumas ligadas ao transporte, outras para entregas de alimentos e até mesmo para realizarem algumas tarefas (a título exemplificativo podemos citar a DefinedCrowd, focada em inteligência artificial, cuja finalidade é oferecer uma plataforma para empresas coletarem, enriquecerem e estruturarem dados para aplicativos de inteligência artificial). Para tanto, essa empresa utiliza também a via do trabalho crowdsourcing (trabalho em multidão) para angariar utilizadores, por meio de sua plataforma Neevo.
Ocorre que, até a presente data, não existe qualquer legislação específica para tal categoria e, por essa razão, a Ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social de Portugal, Ana Mendes Godinho, confirmou que o Governo apresentou, bem como discutiu com os parceiros sociais “uma base do Livro Verde [1] (que já fora finalizado no final do ano de 2020) sobre o futuro do trabalho, que identifica várias áreas de desenvolvimento e de necessidade de regulação”. Entretanto, na conferência de imprensa nomeada ‘O Futuro do Trabalho – Garantir que Ninguém é Excluído’, organizada pela agência Lusa, a ministra, mencionou, ainda, que uma das regulações que se encontram em pauta e que é considerada importante são as questões de “teletrabalho e das relações laborais do trabalho em plataformas digitais chegando até ao enquadramento do trabalho dos chamados nómadas digitais.”
Já o Secretário de Estado do Emprego de Portugal, Miguel Cabrita, ratificou que, após a finalização do Livro Verde acerca do Futuro do Trabalho, haverá “decisões políticas” sobre a regulação do trabalho nas plataformas e afirmou que o governo está trabalhando nesta proposta legislativa com o intuito de estreitar tanto o que tem vindo a ser determinado em outros países como o que vem sendo orientado pela Comissão Europeia e pela OIT, no sentido de reforçar os direitos desses trabalhadores. Outrossim, o reconhecimento abrange os condutores, estafetas [2] (termo luso utilizado para designar os entregadores de alimentos e bens de consumo que andam em mota, que traduzindo para o português do Brasil quer dizer moto, de bicicleta, carro ou até mesmo de trotinete eléctrica, que no Brasil significa patinete elétrica. Geralmente, os seus serviços são utilizados para entregas de encomendas de curtas ou médias distâncias, mas que sejam dentro da área metropolitana da cidade) e até mesmo outros trabalhadores por conta de outrem, com a criação de uma garantia mínima de remuneração e o reforço da sua proteção económica e social.
Desse modo, o coordenador do Livro Verde para o Futuro do Trabalho, Guilherme Machado Dray, comentou, em uma entrevista concedida à Sapo, que existe uma orientação da UE (União Europeia), a qual fala que sempre haverá dois tipos de livros quando as entidades públicas tratam de um certo assunto específico. Entretanto, ressalta que “há o Livro Verde, que faz o diagnóstico, levantamento dos problemas e dá linhas de orientação, a que se pode seguir um Livro Branco que tem propostas legislativas que dão a sequência lógica ao anterior.” Logo, reitera que o Livro em questão é o verde.
Segundo a reportagem do Expresso a proposta legislativa de regulamentação nomeada de “Lei Uber” encontra-se em aberto, mas o tema já foi direcionado à Comissão Permanete de Concertação Social [3] desde novembro de 2020. Entre outras medidas, o intuito é garantir que os trabalhadores possam ter direitos acobertados em diversas situações, como em caso de doença, acidente de trabalho ou até mesmo no desemprego. Logo, Miguel Cabrita pontua: “não vejo como viável e plausível o princípio de que um trabalhador que presta serviço numa plataforma tenha de ser considerado um prestador de serviços, ou seja, de assumir ‘a priori’ que não tem contrato de trabalho”, afirmando ainda que “isso deve depender das condições em concreto em que presta o trabalho”. Por fim, retrata que poderão ocorrer certos casos em que se tratará apenas de uma prestação de serviços, mas em outros casos deverá ser exigido um contrato de trabalho.
Nesse sentido, o Comissário Europeu do Emprego e Direitos Sociais, Nicolas Schmit, concedeu uma entrevista também à agência Lusa, situada em Bruxelas, cujo teor veio corroborar que, mesmo que um trabalhador venha laborar para alguém ou por meio de uma plataforma, ele não deve ter a sua proteção social ou os seus direitos laborais básicos excluídos. Isto é, não importa se o trabalhador é um empregado ou um trabalhador por conta própria (autônomo), devem existir direitos à proteção social, como em casos de doença, acidente ou desemprego. Vale salientar que essa proteção não abrange só os prestadores de serviços que laboram para as plataformas digitais, mas também abrange todos os tomadores de serviços que utilizam desse novo modelo de negócio para atrair mão de obra barata sem qualquer vínculo empregatício. Por isso, Nicolas reconhece que se deve olhar para todas essas categorias, mesmo sabendo que essa não é uma tarefa muito fácil, pois precisa ter olhos para todas, incluindo também os serviços prestados às plataformas por trabalhadores independentes.
Além da necessidade de conferir-se proteção social a motoristas, estafetas e outros trabalhadores que laboram através de plataformas online, outro ponto ressaltado pelo responsável luxemburguês a respeito dessa proposta legislativa nomeada “Lei Uber” é a questão previdenciária. Isso porque, se esses trabalhadores não tiverem acesso à reforma (isto é, à aposentadoria quando ficarem mais velhos), existirá um grande problema nos próximos 30 ou 40 anos. Logo, Nicolas Schimidt assegura que esse será um dos pontos essenciais a ser abordado na pauta do próximo ano.
Por fim, menciona que, se essas plataformas obtêm uma margem de lucro significativa, devem financiar os sistemas de segurança social, mesmo afirmando que não são consideradas empregadoras, nos casos de trabalhadores por conta própria. Por essa razão, Bruxelas quer proporcionar a igualdade de oportunidades em toda União Europeia, mesmo tendo conhecimento que outros Estados-Membros implementaram melhorias no trabalho nas plataformas.
Ademais, Portugal ainda se encontra no mesmo cenário, uma vez que os parceiros sociais pediram uma dilação do prazo até dezembro de 2020 para entregar os contributos acerca do Livro Verde sobre o Futuro do Trabalho, mas o Governo já confirmou que a lei que regulamenta as relações laborais por meio dessas plataformas digitais está em vias de se concretizar, uma vez que a proteção social faz parte de um dos princípios fundamentais do pilar dos Direitos Sociais que foram aprovados há 3 anos na Suécia, em cujo documento lê-se que: “independentemente do tipo e da duração da sua relação de trabalho, os trabalhadores por conta de outrem e, em condições comparáveis, os trabalhadores por conta própria, têm direito a uma proteção social adequada”.
Outrossim, essa será uma das grandes prioridades para o primeiro semestre de 2021 da presidência portuguesa da União Europeia, conforme foi dito no pronunciamento da Ministra do Trabalho após Reunião da Comissão Permanente de Concertação Social.
Notas:
[1] Livro Verde: são documentos publicados pela Comissão Europeia destinados a promover uma reflexão a nível europeu sobre um determinado assunto especial. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/summary/glossary/green_paper.html?locale=pt acesso em: 04/01/2021.
[2] Reportagem acerca do funcionamento dos estafetas em Lisboa, Portugal. Disponível em: https://www.dn.pt/edicao-do-dia/21-nov-2020/estafetas-preparados-para-levar-pedidos-a-lisboetas-confinados–13058501.html acesso em: 05/01/2021.
[3] Artigo 9.º 1 da Lei n.º 108/91 – Compete à Comissão Permanente de Concertação Social, em especial, promover o diálogo e a concertação entre os parceiros sociais, contribuir para a definição das políticas de rendimentos e preços, de emprego e formação profissional. Disponível em: https://dre.pt/web/guest/legislacao-consolidada/-/lc/58853699/201704192334/58928872/diploma/indice acesso em: 04/01/2021
Referências:
PORTUGAL.Conselho Económico e Social. Lei N.º 108/91. Diário da República n.º 188/1991, Série I-A de 1991-08-17.
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Juliete Lima do Ó é Advogada, mestranda em Direito Social e da Inovação pela Nova School of Law (Lisboa, Portugal) e especialista lato sensu em Direito material e processual do Trabalho pela Escola Superior da Magistratura do Trabalho da Paraíba (ESMAT 13)
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Os artigos assinados não representam posições da Academia Paulista de Direito do Trabalho, refletindo a diversidade de visões relevantes abrangidas pelo tema e pela APDT.
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