Por Gilda Figueiredo Ferraz de Andrade, em 18/11/2021
Em menos de duas semanas, por meio de medida cautelar, o Ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF) recolocou ordem na casa, depois da confusão causada pela Portaria 620/2021 do Ministério do Trabalho e Previdência no âmbito das relação às relações trabalhistas, ao proibir a contratação e dispensa por justa causa de empregados que se negassem a ser vacinados contra a Covid-19.
Pelas manifestações anteriores, a decisão monocrática do Ministro Barroso deve ser ratificada pelo Plenário da Alta Corte. O argumento do relator é incontestável: “Existe consenso médico-científico quanto à importância da vacinação para reduzir o risco de contágio Covid-19, bem como para aumentar a capacidade de resistência de pessoas que venham a ser infectadas”.
A Portaria 620 reunia uma série de inexatidões materiais quando confrontadas com a legislação vigente, a começar pelo fato de que a competência de legislar sobre o Direito do Trabalho é da União (art.22, inciso I, CF).
Diante dos mais de 600 mil brasileiros mortos pela Covid-19, a Portaria 620 causou perplexidade porque de forma errática desejava criar direitos para orientar o Judiciário, o empresariado e a sociedade brasileira sobre uma questão que vai além das relações trabalhistas, pois se trata de salvaguardas sanitárias contra uma pandemia devastadora, que implica na adoção de regras nacionais.
De forma equivocada, a Portaria 620/2021 chegava a limitar o poder diretivo do empregador de contratar, demitir ou aplicar medidas disciplinares aos empregados que não desejarem ser imunizados, colocando em risco o desenvolvimento das empresas e a saúde da sociedade. Como afirma o filósofo Mircea Eliade, “há era em que você só pode avançar na direção oposta”. Esse é o caso da Portaria 620, que recebeu críticas continuadas de magistrados, advogados, promotores, empresários. Todas no sentido de que a norma seguia na contramão das decisões do Supremo Tribunal Federal, quando julgou as Adis (Ações Diretas de Inconstitucionalidade 6586 e 6587), da Justiça do Trabalho e do Ministério Público do Trabalho, que defendem a obrigatoriedade da vacinação para todos os trabalhadores. Portanto, a Portaria acaba criando insegurança jurídica ao invés de definir dispositivos que tragam luz ao problema.
Mesmo que a vacinação contra a Covid-19 não contemplasse jurisprudência sobre a questão da obrigatoriedade da imunização no ambiente do trabalho, o artigo 8º da CLT esclarece o tema: “ As autoridade administrativas=e a Justiça do Trabalho, na falta de disposições legais ou contratuais, decidirão, conforme o caso, pela jurisprudência, por analogia, por equidade e outros princípios e de direito, princípios e normas gerais de direito, principalmente do direito do trabalho , e, ainda de acordo com os usos e costumes, o direito comparado, mas sempre de maneira que nenhum interesse de classe ou particular prevaleça sobre o interesse público. “
Esse, portanto, é mais um dos equívocos da Portaria, que agora tem trechos controversos suspensos pelo Supremo, a lembrar que a Constituição Federal de 1988 em seus artigos 5º e 6º o direito à vida, à saúde e que reduzir os riscos no ambiente de trabalho é um dever do empregador e também do Estado (artigo 7º). O direito à saúde está manifestado ainda no artigo 2º. da Lei 8080/1990, que regulamenta os serviços de saúde em todo o país. A própria CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), em seu artigo 482, determina os critérios para a demissão por justa causa. Entre elas, destacamos a falta de respeito às normas de saúde e segurança.
Para adensar essa posição, o Código Penal que, em seu artigo 267, prevê pena de 10 anos de reclusão para quem causa “epidemia, mediante a propagação de germes patogênicos”, pois esse ato é considerado infração de medida sanitária. Temos também o artigo 268 do CP, prevê que quem “infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa pode ser condenado à detenção”. Portanto, fica claro que preservar a saúde coletiva se sobrepõe ao direito individual. Nesse caso de recusar a vacina.
Se todos esses argumentos não bastassem, a Portaria contradizia uma lei assinada pelo próprio presidente Jair Bolsonaro, em 2020, (lei 13.979) que previa vacinação obrigatória como forma de combater a Covid-19. Em seu artigo 3º, a Lei estabelece que “Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional de que trata esta Lei, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, entre outras” e determina a realização de “vacinação e outras medidas profiláticas".
As empresas que de forma prudente - e com base na CLT - vinham exigindo de seus funcionários comprovantes de vacinação contra a Covid-19 poderiam sofrer as sanções previstas na Lei 9.029/95, que dá direito a reparação por dano moral no caso de o emprego ser vítima de ato discriminatório. Assim sendo, os empregados dispensados por não terem se vacinado poderão optar por ser reintegrados às funções com recebimento integral da remuneração pertinente ao período de afastamento ou percepção em dobro. Em ambos os casos, com os valores serão corrigidos por correção monetária e juros.
Na verdade, a saúde é garantida constitucionalmente e, quando o empregador exige vacinação de seus empregados, age para que esses não se tornem um elemento contaminante, colocando em risco a saúde e segurança dos demais profissionais, além de clientes, terceiros, parceiros negociais e comunidade na qual estão inseridas. Assim sendo, cumprem o que está expresso no artigo 225, caput da CLT, que impõe a adoção de normas de saúde e segurança por parte das empresas no desenvolvimento de sua atividade negocial.
Vale lembrar que o STF observou que a vacinação não é voluntária e a recusa em se vacinar poderia restringir o acesso da pessoa a determinados lugares. A tese aprovada pela Corte previa ainda a possibilidade de “restrição ao exercício de certas atividades ou à frequência de determinados lugares, desde que previstas em lei”. Essas restrições poderiam ser impostas pela União, estados e municípios. Atualmente para frequentar shows, viajar, ir ao cinema só com a vacinação em dia e com o tal passaporte em mãos.
Na decisão, em seu inciso II, afirma que “a obrigatoriedade da vacinação a que se refere a legislação sanitária brasileira não pode contemplar quaisquer medidas invasivas, aflitivas ou coativas, em decorrência direta do direito à intangibilidade, inviolabilidade e integridade do corpo humano, afigurando-se flagrantemente inconstitucional toda determinação legal, regulamentar ou administrativa no sentido de implementar a vacinação sem o expresso consentimento informado das pessoas”
Em conclusão, a decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a Portaria 620/2021 contribui para trazer mais clareza sobre a vacinação laboral e alento para assegurar mais saúde e segurança a todos os trabalhadores brasileiros, além de devolver o poder diretivo dos empregadores, que foi indevidamente usurpado pela Portaria 620.
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Gilda Figueiredo Ferraz de Andrade é advogada militante, graduada pela USP, com especialização em Direito Empresarial pela USP. Foi conselheira OAB-SP por cinco mandatos; membro do IASP e conselheira da AAT-SP. Integra o Conjur (Conselho Superior de Altos Estudos Jurídicos) e o Cort (Conselho de Relações do Trabalho) da Fiesp. Membro da APDT, ocupante da cadeira nº 15
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